By Carlos Fausto
Professor of Anthropology at the National Museum of the Federal University of Rio de Janeiro, Brazil
“Kanari Kuikuro shows me a pot full of winged leafcutter ants he has just collected”. November, 2002. Xingu Indigenous Land, Brazil. Photo by Carlos Fausto
Two weeks ago, Kanari Kuikuro called me from Canarana, a small town in the Brazilian Amazon, where he now lives with his wife and many children. He is originally from the Xingu Indigenous Land, which lies up north and is one of the most culturally rich multiethnic constellation of South America. Kanari was apprehensive.
– Pamü (cousin), we’re afraid. We wanted to go back to the village, but now our Land is closed.– Pamü, don’t risk it. You can only go back if you go into quarantine. It’s a serious disease.– I know, pamü, it’s like the measles from the time of my grandfather Agatsipá.
When I met Agatsipá he was quite old, but his mind was still keen, his eyes bright. He was a brilliant storyteller, and lived a long life. He survived the multiple outbreaks and epidemics that struck the population of the Upper Xingu during the 20th century. The 1954 measles epidemic is the most remembered to this day. It was brutal and quick, scything through whole families at once, leaving no time to properly bury the dead. With all those around falling sick, there was nobody left to provide for food, much less see to the bodies. Vultures swarmed and people scattered, carrying the disease elsewhere.
Indigenous peoples know the story well. Since the start of the colonization process, they have learned in their flesh what epidemics are. Smallpox, measles, chickenpox, flu. One often came on the heels of the last, never giving survivors a chance to recover. The Jesuit José de Anchieta wrote that in 1562, an epidemic killed 30,000 Tupi Indians around Todos os Santos Bay; the next year, smallpox carried off many survivors, and hunger decimated the rest of the population. Plague by plague, the bay was depopulated. In 1580, Anchieta wrote: “the number of people that have been wasted [in Bahia] over the last twenty years is scarcely believable; no one imagined that so many could be consumed at once, much less in so short a time.”
The same story repeated itself many times across different regions of what would come to be Brazil. A few were preserved in written memory. Father João Bettendorf, for example, recounts an outbreak of “pox” in Pará, in 1695, which was followed by a torrent of other diseases: “Once the pox was entirely gone, there came terrible colds, of which many Indians died […] and there also came some sort of measles which killed many and lasted for months upon months.”
Most of these health crises, however, raged far from the eyes and the quills of missionaries, travelers, and colonial administrators. When we look at the archaeological record in the Upper Xingu, where the Kuikuro and other Indigenous peoples live, we can observe a break, starting in the 17th century. The many large, fortified villages that existed at the time slide into a clear decline. The Indigenous population in the region may have been 10 or 20 times larger than it is today, standing at some 50,000 to 100,000 people. However, in the early 17th century, something happened, and the large villages were abandoned. The most reasonable hypothesis posits a demographic crisis sparked by a series of epidemics, smallpox chief among them. Not only is smallpox exceptionally lethal, but its window of transmission is also broad. Asymptomatic bearers fled from death in contaminated villages, carrying what the chroniclers called “the pestilential ill” deeper into the countryside. That way, smallpox must have made it to the Upper Xingu many decades before the first Indian slave-hunters arrived in the 18th century.
These epidemics were followed by others, many of them recounted today by those who live in the Xingu in the form of narratives that weave between history and myth but are invariably tragic. The 1954 measles epidemic, however, is unquestionably the 1954 measles epidemic. The Xinguanos know very well what happened, and they know that if medical aid, and, above all, food, had arrived earlier, lives would have been spared. But resources were scarce, communication was patchy, and obstacles were myriad. And, as in the pandemic we face today, there was no vaccine.
It was vaccination programs that, starting in 1970, began to slowly invert the curve of Indigenous population decline. Their numbers rose haltingly after over four centuries of demographic losses. The key was threefold: vaccines, medical treatment, and the preservation of territory. Demarcation of Indigenous lands after the 1988 Constitution and the creation of Indigenous Sanitary Districts in 1999 are key landmarks in this struggle for life.
All of that is imperiled today: not only because we have no vaccine and no viable treatment against this new virus, but also because we lack a government fit for the challenge. The Brazilian government seems to be flirting with death, ignoring the obvious. “It’s like the measles from the time of my grandfather,” as Kanari Kuikuro reminds us. Unburied bodies in the streets, endless deaths in the villages. We must take urgent health measures to defend Indigenous peoples and their lands. We cannot see another genocide.
Kanu, one of the greatest singers in the Upper Xingu and the main character in our documentary The Hyper Women, sends me a voice message: “We’re afraid, but we’re all right. The disease hasn’t made it here yet.” One more day of relief. For how long?
Versão em Português:
Carlos Fausto é professor de antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Global Scholar da Universidade de Princeton.
Há duas semanas Kanari Kuikuro me ligou de Canarana, pequena cidade ao sul da Terra Indígena do Xingu, onde mora com mulher e muitos filhos:
— Oi, pamü (primo), estamos com medo. Queríamos voltar para aldeia, mas agora está tudo fechado.
— Pamü, não pode arriscar, vocês só podem voltar se fizerem quarentena. É uma doença grave.
— Eu sei, pamü, é como o sarampo do tempo de meu avô Agatsipá.
Conheci Agatsipá já bastante idoso, mas ainda com inteligência viva e os olhos brilhantes. Era um grande narrador de mitos e memórias. Teve vida longa. Sobreviveu a vários surtos e epidemias que vitimaram a população do Alto Xingu durante o século 20. A epidemia de sarampo de 1954 é a mais lembrada dentre elas. Foi aguda e veloz, vitimando famílias inteiras, sem que houvesse tempo para enterrar direito os mortos. Quando todos estavam doentes, não havia quem pudesse providenciar a comida, muito menos dispor dos corpos. É nessa hora que os urubus se aglomeram e as pessoas se espalham, levando a doença para outras partes.
Os povos indígenas conhecem bem essa história. Desde o início da colonização, tiveram que aprender em seus corpos o que é uma epidemia. Varíola, sarampo, varicela, gripe. Muitas vezes, uma se seguia à outra, sem que os sobreviventes tivessem tempo para se recuperar. Anchieta conta que, em 1562, uma epidemia matou 30 mil índios tupi na Baía de Todos os Santos; no ano seguinte, a varíola consumiu muitos sobreviventes, enquanto a fome acabou por dizimar o resto da população. E assim a Baía foi sendo despovoada, a ponto de Anchieta escrever em 1580, “a gente que de 20 anos a esta parte é gastada […] parece cousa, que se não pode crer; porque nunca ninguém cuidou, que tanta gente se gastasse nunca, quanto mais em tão pouco tempo”.
Essa mesma história se repetiu muitas vezes em diferentes partes do que viria a ser o Brasil. De alguns episódios, restou memória escrita. O Padre João Betendorf, por exemplo, conta-nos sobre um “andaço de bexigas” (varíola) que grassou no Pará, em 1695, ao qual se sucederam outras tantas doenças: “Acabadas já, de todo, as bexigas, entraram uns terríveis catarros, dos quais morreram muitos índios [...]; entrou também uma casta de sarampo que matou a muitos e durou meses e meses”.
A maioria dessas crises sanitárias, contudo, ocorreu longe dos olhos e da pena de missionários, viajantes e administradores coloniais. Quando olhamos o registro arqueológico do Alto Xingu, onde vivem os Kuikuro e vários outros povos indígenas, notamos uma descontinuidade ocorrer a partir do século 17. Há um claro declínio das grandes e numerosas aldeias fortificadas que lá existiam. A população indígena na região era possivelmente 10 a 20 vezes maior do que a atual, somando 50 a 100 mil pessoas. Contudo, no início do século 17, algo aconteceu que levou as grandes aldeias a serem abandonadas. A hipótese mais razoável: uma crise demográfica causada por uma sequência de epidemias, com a varíola ocupando lugar de destaque. Isso não apenas porque o vírus da varíola é extremamente letal, mas também porque a sua “janela” de transmissão era ampla. Os doentes ainda sem sintomas fugiam da morte nas aldeias contaminadas, levando consigo, como escrevem os cronistas, o “mal pestilencial” para o interior. A varíola deve ter, assim, chegado ao Alto Xingu muitas décadas antes de lá aparecerem os primeiros escravizadores de índios, já no século 18.
A essas primeiras epidemias seguiram-se outras, muitas delas descritas hoje pelos Xinguanos na forma de narrativas meio históricas, meio míticas, mas sempre trágicas. O sarampo de 1954, contudo, é definitivamente o sarampo de 1954. Os Xinguanos sabem bem o que ocorreu, sabem também que se a ajuda médica e, sobretudo, alimentar tivesse chegado mais rápido, vidas teriam sido poupadas. Mas os recursos eram escassos, a comunicação era precária e as dificuldades eram várias. E, como hoje, não havia vacina.
Foram os programas de vacinação que, a partir de 1970, levaram à inversão progressiva da curva demográfica descendente dos povos indígenas. A população começou timidamente a crescer após mais de quatro séculos de perda demográfica. A chave para o crescimento foi o tripé vacina, atendimento médico e preservação do território. A demarcação das terras indígenas após a Constituição de 1988 e a criação dos Distritos Sanitários Indígenas em 1999 são marcos fundamentais nessa luta pela vida.
Tudo isso está hoje em risco, não só porque não temos vacina nem remédio contra o novo vírus, como também porque não temos um governo à altura do desafio. O governo brasileiro parece flertar com a morte, sem perceber o óbvio. “É como o sarampo do tempo de meu avô.” Corpos insepultos nas ruas, mortes sem fim nas aldeias. Medidas sanitárias urgentes precisam ser tomadas em defesa dos povos indígenas e de suas terras. Não podemos ter um novo genocídio.
Kanu, uma das maiores cantoras do Alto Xingu e protagonista de nosso filme “As Hiper Mulheres”, me manda uma mensagem de áudio: “estamos com medo, mas estamos bem, a doença não chegou por aqui”. Mais um dia de alívio. Por quanto tempo?
Esta peça foi publicada originalmente pela Somatosphere e pode ser encontrada aqui:
http://somatosphere.net/2020/the-measles-from-the-time-of-my-grandfather-amazonian-ethnocide-memories-in-times-of-covid-19.html/
Esta peça foi publicada originalmente pela Somatosphere e pode ser encontrada aqui:
http://somatosphere.net/2020/the-measles-from-the-time-of-my-grandfather-amazonian-ethnocide-memories-in-times-of-covid-19.html/
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